13 de maio é comemorado como o dia da abolição da escravatura, data da assinatura da Lei Áurea. É comum conferir à princesa Isabel o crédito quase total pelo evento, entretanto, o fim da escravidão ocorreu gradualmente, com discussões se desenrolando ao longo de todo o período imperial.
A data em questão não é comemorada pelo movimento negro, isto em decorrência dos termos em que se deu a libertação dos escravizados. Liderado por interesses nacionais, mas sem ignorar pressões externas, o abolicionismo era mencionado desde o tratado de reconhecimento da independência, em 1822, sendo alvo de várias iniciativas nas décadas seguintes.
A pressão internacional do século XIX
Enquanto o território brasileiro ainda estava sob domínio português, o governo do país sofria pressões pela abolição da escravatura, especialmente por parte da Inglaterra. Se na primeira metade do século XIX as discussões concentravam-se na abolição do tráfico humano, somente a partir de 1850 cresceram as pressões no sentido de proibir o próprio regime de escravidão.
No século anterior, a Inglaterra foi pioneira na Revolução Industrial e tinha grande interesse na busca de novos mercados para seus produtos. Além disso, saiu das Guerras Napoleônicas, encerradas em 1815, como principal potência marítima do mundo, segundo o historiador Eric Hobsbawm.
A maior parte dos escravos era transportada pela via marítima a partir do continente africano e este comércio era um dos negócios mais lucrativos da época. Assim, a força da marinha britânica tinha capacidade de exercer forte pressão sobre esse comércio.
Os interesses ingleses eram múltiplos e não se concentravam em preocupações humanitárias. Na verdade, o tráfico possuía forte impacto sobre os interesses econômicos britânicos. Isto porque poderia reduzir os custos de produção de países concorrentes e afetar os mercados consumidores de produtos britânicos, pois o fim do tráfico liberaria expressivas quantidades de capitais, que poderiam ser utilizados em outras áreas.
Assim, a Inglaterra exerceu forte pressão pelo fim do comércio de escravos que, nesse período, não se assemelhava ao o fim da escravidão.
Já em 1815, no Congresso de Viena que encerrou as Guerras Napoleônicas, Portugal tinha como um de seus principais interesses adiar a abolição do tráfico, que era a principal fonte de mão de obra no território brasileiro. No Congresso, ficou acertado que o tráfico ficaria proibido ao Norte da Linha do Equador, garantindo a manutenção do transporte entre o continente africano e o Brasil.
A Independência do Brasil, proclamada em 1822, só foi reconhecida por Portugal em 1825, com o auxílio da mediação inglesa. Como resultado da negociação trilateral, o país recém independente renovou tratados de comércio que Portugal havia firmado com a Inglaterra, nos quais ficou estipulado o compromisso com o fim do tráfico até 1830.
Em 1831, a chamada Lei Feijó estipulou o fim do tráfico de escravos do Brasil, como prometido aos britânicos. O texto dizia “Declara livres todos os escravos vindos de fora do Império, e impõe pena aos importadores dos mesmos escravos”. Mas a medida teve pouca aplicabilidade prática, motivo pelo qual ficou conhecida como (dando origem à expressão) “para inglês ver”.
De fato, em 1822, período da Proclamação da Independência, cerca de um terço da população brasileira era formada por escravos. Em 1850, os escravos compunham 30% dos cerca de 7,5 milhões de habitantes. O que demonstrou um aumento em seu número absoluto, conforme consta no livro A Ordem do Progresso.
As controvérsias políticas
Seria muito difícil associar automaticamente a questão abolicionista a um determinado partido político. De fato, embora fosse uma reivindicação eminentemente liberal, as principais leis abolicionistas foram aprovadas por gabinetes liderados pelo Partido Conservador, sendo este partido menos coeso sobre a questão.
Na verdade, poderíamos traçar uma batalha parlamentar que se dava entre três grupos principais:
- Os escravistas, que defendiam a manutenção da escravidão;
- Os emancipacionistas, que buscavam a mera libertação jurídica dos escravos (e foram o grupo vitorioso);
- E os abolicionistas, que apoiavam não apenas a libertação, mas a concessão de direitos aos ex-escravos, com sua plena inserção na sociedade.
Paralelamente aos grupos parlamentares, como movimento de contestação, somavam-se rebeliões negras, como a muito conhecida Revolta dos Malês. Além disso, também se juntava ao conjunto de oposição, movimentos populares, que faziam propagandas em jornais e organizavam compras de alforrias. Nomes como os de André Rebouças, Abílio Borges, Luiz Gama, José do Patrocínio ou Joaquim Nabuco desempenharam funções importantes no ativismo pela abolição.
Para a classe dominante, um argumento corrente era que se devia realizar uma “abolição por cima”, evitando risco de subversão. De fato, uma expressão muito utilizada para o período é o “receio do haitianismo”, que faz alusão ao medo de ocorrer no Brasil uma rebelião similar à que permitiu a independência do Haiti, que foi liderada por escravos contra seus senhores.
Assim, essa classe dominante alegava que uma libertação legal daria margem a uma ideia de direito, favorecendo reivindicações e rebeliões que colocariam em risco a própria integridade brasileira. Defendia, então, que deveria ocorrer uma libertação concedida pelos senhores de escravos, que fosse vista como um ato de generosidade e favorecesse a obediência.
Então a abolição não veio das mãos da princesa Isabel?
Há vertentes da história que acredite que a abolição da escravidão ocorreu somente por causa da assinatura da Lei Áurea pelas mãos da princesa Isabel. Entretanto, essa teoria já foi refutada por diversos historiadores e sociólogos.
Clóvis Moura (1925-2003) foi um sociólogo brasileiro que, em seu livro Rebeliões da Senzala, apresentou o quilombismo como o movimento protagonista na conquista do abolicionismo. Isso porque, o protagonismo dado à princesa, no entendimento de Clóvis Moura, atribui ao negro papel passivo diante da construção da história do pais, já que indica que a escravidão era “tolerada” pelos escravizados e coloca um viés de “bondade” à Coroa portuguesa.
Nesse sentido, o sociólogo diverge diretamente desse raciocínio e menciona que o escravizado sempre esteve ativamente lutando contra a condição de escravo desde os primeiros anos do regime.
Desse modo, Moura afirma que os quilombos e as diversas revoltas no Brasil são os maiores exemplos disso, pois representaram a luta dos escravizados e foi o elemento principal de desgaste do sistema escravista. Portanto, a escravatura chegou ao fim não por bondade da princesa Isabel, mas sim pela resistência e empenho dos escravizados.
Além disso, para ele, mais do que a assinatura da Lei Áurea, a conquista pela abolição da escravidão representou a liquidação do sistema de governo baseado no escravismo.
Através desses estudos, conseguimos perceber que o quilombo de Palmares é considerada uma das primeiras experiências políticas do negro escravizado e uma das mais fortes enquanto movimento de oposição ao regime colonial. Além de Palmares, diversos agrupamentos foram criados e tiveram tamanha importância para o movimento de resistência, como pontua Walmyra Albuquerque, professora e pesquisadora da UFBA:
“Palmares é nosso exemplo mais bem documentado de quilombo. Mas acho que a gente precisa pensar sobre outras comunidades quilombolas que foram mais numerosas, algumas delas muito mais próximas dos centros urbanos, que representavam formas muito bem-sucedidas de articulação de resistência e até de negociação”, constata a pesquisadora em entrevista.
O fim do tráfico: Lei Eusébio de Queiroz
A Lei Eusébio de Queiroz, em 1850, foi responsável pelo fim do tráfico de escravos, após a aplicação quase inexistente da Lei Feijó. Na verdade, o período entre 1831 e 1850 seria marcado pela intensificação do tráfico, o que reduziria a oposição à Lei Eusébio, dada a grande disponibilidade de mão de obra escrava e o alto nível de endividamento dos latifundiários.
A Lei de 1850 foi aprovada sem grande oposição durante a “Trindade Saquarema”, um gabinete liderado pelo Partido Conservador, sendo uma das prioridades dos ministros da Justiça e dos Negócios Estrangeiros, Eusébio de Queiroz e Paulino José Soares de Sousa.
O tema era especialmente relevante após a Lei Aberdeen, de 1845, que permitia a abordagem a navios suspeitos de transportarem escravos. A legislação em questão foi considerada um desrespeito à soberania nacional e fortemente criticada no Brasil, causando embates com a Inglaterra, em virtude de suas abordagens a navios brasileiros.
Os motivos do embate podem ser percebidos pelo nome original da lei, chamada de “Brazilian Act” (algo que poderia ser traduzido como a “Lei do Brasil”), em clara intervenção sobre assuntos domésticos.
Como forma de evitar as abordagens inglesas, o Brasil chegou a recorrer à utilização de navios estadunidenses no transporte, os chamados “clippers”, a fim de evitar a fiscalização. Essa Lei funcionaria como uma forma de pressão que não podia ser ignorada, embora oficialmente a abolição já houvesse ocorrido.
Em 1850, o Brasil travou uma guerra com Juan Manuel Rosas, então líder da Confederação Argentina. A busca pela simpatia internacional à causa brasileira favoreceu o fim do tráfico, que sofreu influência de pressões estrangeiras.