Após a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que descriminalizou o porte de maconha para consumo pessoal, outros órgãos ligados ao Judiciário avaliam medidas a serem tomadas. O Conselho Nacional de Justiça (CNJ), por exemplo, fará um levantamento em todo o país dos casos que se encaixam nas novas regras definidas pela Corte, com a realização de mutirões carcerários para corrigir prisões que tenham ocorrido fora dos parâmetros definidos no Supremo.
O conselho informou que existem hoje 6.343 processos parados que aguardavam entendimento do STF para seguir, conforme dados do Banco Nacional de Demandas Repetitivas e Precedentes Obrigatórios do órgão.
A Defensoria Pública da União (DPU) ainda vai analisar quais medidas poderão ser tomadas após decisão do STF. Em nota, o órgão afirmou que o novo entendimento pode ser usado de forma retroativa, mas afirma que cada situação precisa ser avaliada individualmente.
Em São Paulo, a Defensoria Pública estadual avisou que aguarda a publicação do acórdão para avaliar a possibilidade de promover um mutirão “para análise das faltas graves que eventualmente tenham sido aplicadas às pessoas presas em razão de porte de drogas”.
Temor de esvaziamento
Apesar da definição do STF, profissionais da área avaliam que a mudança não terá um efeito imediato relevante, porque as condenações por tráfico de pequeno porte dificilmente são baseadas apenas na quantidade que o usuário carregava. Outras provas, como dinheiro ou uma mochila com o entorpecente, levam o juiz a associar o porte ao tráfico. Apesar de trazer novidades importantes, a decisão mantém a avaliação individual do juiz para classificar ou não como tráfico.
Coordenador do grupo de atuação da DPU no STF, o defensor público federal Gustavo de Almeida Ribeiro disse que a decisão pode indicar uma redução nas condenações injustas. Ribeiro espera que, na prática, ela não acabe esvaziada.
— É importante que não seja usada qualquer justificativa genérica capaz de afastar esse limite estabelecido, como estar em um local de venda de droga — disse Ribeiro. — A diferença entre traficante e usuário deveria ser feita em relação a outros tipos de droga.
Um estudo publicado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) no ano passado, com base em dados de 2019, apontou que 7,2% de todos os réus processados por tráfico de drogas foram pegos com até 40 gramas de maconha e, por isso, poderiam ser beneficiados com o novo entendimento do Supremo. O percentual é com base na análise de 5.121 ações por tráfico de drogas em todos os tribunais do país no primeiro semestre, de um universo de 41,1 mil réus processados por esse crime no período. O índice significa que quase 3 mil pessoas poderiam ser beneficiadas pela presunção da inocência.
A autora da pesquisa, Milena Karla Soares, é mais otimista em relação aos efeitos práticos da decisão do STF. A técnica de desenvolvimento e administração do Ipea afirma que o limite de 40 gramas traz segurança jurídica aos usuários e “evita que estes sejam levados à justiça, desafogando o sistema”. Mas Milena pondera que usuários de outras drogas “seguem no limbo jurídico”.
— Os dados indicam que usuários de cocaína estão mais sujeitos a serem tipificados e encarcerados por tráfico, provavelmente devido ao estigma da substância. A instituição de um critério objetivo de quantidade para diferenciar usuários e traficantes provavelmente fará com que os atores do sistema de justiça exijam maior rigor e transparência nos métodos de pesagem. Os registros de quantidade de drogas nos processos por tráfico são extremamente imprecisos. Na maioria dos casos, não se sabe se a pesagem foi feita com ou sem a embalagem — detalhou.
Diferença nos estados
A mesma pesquisa do Ipea mostrou que, em seis estados, a mediana (valor central de um conjunto de dados, usado para evitar distorções provocadas por números muito descolados da média) de maconha apreendida e que resulta em processo por tráfico é menor que as 40 gramas definidas como limite de diferenciação pelo Supremo.
Em outra pesquisa do Ipea foram identificadas as medianas de apreensão de maconha que resultam em abertura de processos por tráfico de drogas. No Rio de Janeiro, que tem a segunda maior mediana, o valor é de 147 gramas. No Amazonas, de 20 gramas. O único estado com uma mediana muito acima é o Mato Grosso do Sul (1,1 kg), rota de entrada de drogas vindas do Paraguai.
“Há de se ressaltar que, entre os réus processados por tráfico de drogas, 49% alegaram ser usuários ou ter vício em drogas, e 30% afirmaram que a droga apreendida se destinava a uso pessoal”, diz o trabalho.